Nicolás está insone, dorme irrequieto no quarto do Palácio Miraflores adaptado para se refugiar quando não vai para sua residência oficial ao final do expediente. Tudo vai de mal a pior – na véspera, o palácio havia ficado sem luz por quase quatro horas, e no início da madrugada foi a vez de faltar água até para o uso do banheiro. Os protestos crescem por toda a parte, Guaidó e López aos poucos vão atraindo generais traidores para suas fileiras. Até quando resistir? Cuba, China, Erdogan e Putin dizem que deve perseverar e pressionam para isso, mas faz sentido essa luta?
Meio dormindo, meio acordado, Nicolás passa a ser atormentado por sua consciência, que agita um pouco mais seu sôfrego descanso. “Presidente, veja o que está acontecendo com seu país, com o seu povo. Olhe-se no espelho e se pergunte: qual sua responsabilidade nisso?” Ele balbucia então que sofre e faz o que pode, mas que um complô internacional isolou seu país, que muitos o traíram e que, por azar, ou interferência dos Estados Unidos, os preços achatados do petróleo por muitos anos destruíram a economia local.
“Mas, Nicolás”, continua a consciência, “foi esse socialismo do século XXI que acabou com o empreendedorismo e expulsou as empresas. Aqui nada se produz mais e falta tudo, a população está fugindo a pé, a fome a as doenças crescem e você ainda se sente em condições de liderar um processo de recuperação?” Atônito, o mandatário acossado resmunga que tem saudades do Comandante Chávez, em quem confiava plenamente. Diz que realmente aguarda todas as manhãs os passarinhos cantarem – os que sobraram e ainda não foram devorados pela massa em busca de proteína – e, através dessa melodia, ouvir os recados do antecessor. Confessa que o fardo da presidência lhe é pesado demais, que nasceu para servir a um líder, mas que os Estados Unidos haviam inoculado um câncer mortal no mestre Hugo e que, se havia algo do que se arrependia, era o fato de não tê-lo embalsamado num mausoléu.
“Você realmente não acredita nisso, não é mesmo? Lembra-se de quando era motorista de ônibus e sindicalista? A situação do país, dos trabalhadores e da população era bem melhor do que hoje, mesmo com um capitalismo atrasado, porém bem menos corrupto do que o regime atual… Nicolás, pede pra sair!”, provoca a consciência. De olhos fechados e ouvindo na vizinhança do palácio o barulho de motos e disparos ocasionais de armas, ainda tenta se justificar. Reforça possuir sangue nas veias e patriotismo no coração, e que não irá abandonar o barco, pois pretende liderar um amplo movimento de resgate da atividade econômica e dos valores apregoados por Bolívar e Chávez, mas antes pretende esmagar os traidores oposicionistas.
“Errar, Nicolás, é humano. Insistir no erro, uma sandice. Você pode ir embora para Cuba, embora milhões de conterrâneos que fogem daqui escolhem qualquer país, menos Cuba, para recomeçar. Você fracassou, reconheça isso! E o melhor que tem a fazer é deixar o poder para uma transição sem banho de sangue!”, alerta a consciência. Com a mente ofuscada entre a razão e o pesadelo, o presidente da Nação que se esfacela resiste e se vangloria que ainda conta com o apoio da maioria dos generais, com quem divide o que resta de riquezas e negócios operantes naquele território onde o glorioso Bolívar havia iniciado, há mais de 200 anos, sua cruzada libertadora da América do Sul.
“Argumentos racionais e dados irrefutáveis não parecem mais sensibilizá-lo. É uma pena, pois de sua decisão pessoal depende o destino de mais de 30 milhões de pessoas, a maioria hoje em estado de penúria e sem perspectivas nessa terra arrasada. Nicolás, viva sua miserável e egoísta existência e passe para a História como um ditador insensível que deliberadamente fez naufragar sua própria pátria pelo apego ao poder”, sentenciou a consciência. De súbito, ele desperta um pouco sem ar e com um raciocínio confuso. Sentindo calafrios e um tremendo mal-estar, levanta-se, vai ao banheiro lavar o rosto e, por sorte, encontra um pouco de água na torneira e uma lâmpada que acende ao apertar o interruptor por três vezes, o que lhe permite mirar seu reflexo no espelho trincado.
Nicolás decide que chegou o momento de mudar, já que sua imagem encontra-se quase que irremediavelmente desgastada. “La situacion está fueda”, sintetiza ele. Em praticamente todo o planeta, é visto como um ridículo tiranete sustentado por militares cooptados e gananciosos e apoiado apenas por países ditatoriais. Não irá mais emprestar seu rosto tal qual como está para simbolizar aquele cenário dantesco e embaraçoso. Descola então um barbeador usado de gilete gasta e, mesmo sem o creme de barbear, se livra de seu abastado bigode. Pronto! Agora sua revolução triunfará invencível com um novo rosto que simbolize justiça, igualdade, oportunidade e felicidade para todos …
Gustavo Junqueira | Jornalista.